27.7.08

Sobre livre-arbítrio e simbolismos

Uma análise do conto "A Diabólica Comédia" com base na palestra
de Borges sobre Emanuel Swedenborg por Ludimila Hashimoto

A referida palestra, várias vezes citada por aqui, apresenta uma breve biografia de E.S. e se refere à sua extensa (em volume e temas científicos tratados) bibliografia produzida, segundo Borges, com lucidez inquestionável e num estilo muito tranqüilo.

De acordo com Borges, o mais misterioso dos súditos de Carlos XII foi seu engenheiro militar, E. Swedenborg. E a Swedenborg, após uma revelação precedida por sonhos eróticos, foi-lhe permitido visitar o outro mundo, com seus inumeráveis céus e infernos.

Na Divina Comédia (a que o título do conto faz referência), o livre-arbítrio cessa na hora da morte. Há a condenação por um tribunal ao céu ou ao inferno.

Na obra de E.S. é diferente, o oposto, pois o livre-arbítrio não cessa. O outro mundo- Swedenborg sabe porque esteve lá - é mais intenso, concreto, colorido, fazendo este parecer uma sombra. Corroborando a opinião de Santo Agostinho, para Swedenborg o gozo sensual também é mais forte no paraíso (leia-se nos “inumeráveis céus e infernos”) do que aqui. Se assim não fosse também no céu/ inferno retratado no conto, Perséfone jamais teria exercido tamanha influência no enredo. Com essas obervações, podemos dizer que o "A Diabólica Comédia" é um texto ficcional que se encaixa com coerência, por vontade própria ou fruto de especulações bizantinas da minha parte, no mundo nada ficcional e nada convencional de Swedenborg.

Quanto ao papel do livre-arbítio na história, sua importância é total, uma vez que as personagens estão, o tempo todo, exercendo o poder de escolher suas ações, originadas na sua vontade mais visceral.

Borges frisa, recordando uma frase de Emerson, que, na construção de sua obra quase absurda, E.S. não argumenta em momento algum, pois os argumentos não convencem ninguém.

No conto tampouco há argumentos, no sentido de raciocínio com objetivo de gerar conclusões menos imediatas. Há ações que, uma vez transcorridas todas nesse outro mundo de imortalidade, são acertadamente intensas, sensoriais, concretas e coloridas.

Para Swedenborg, tudo deve ser lido e interpretado – metáforas, símbolos, hipérboles -, o que nos remete a mais um tema de sua enorme obra: a doutrina das correlações. Ele diz que cada palavra na Bíblia tem pelo menos dois significados. Dante (vale a pena mencioná-lo mais uma vez) acreditava que havia quatro significados para cada trecho.

Em sua aula na Universidade de Belgrano, Borges dá um ou outro exemplo (dois, na verdade) de palavras incluídas na taxionomia do sistema de correlações de E.S.

A luz, por exemplo, é símbolo evidente da verdade.

O outro símbolo mencionado tem presença bastante relevante no conto. (Para minha sorte, uma vez que não tive acesso à obra original de Swedenborg e me guio exclusivamente e com confiança cega – sem trocadilho – pela palestra do escritor argentino).

O cavalo representa a inteligência pelo fato de nos levar de um lugar ao outro.

Nos seguintes trechos da "Diabólica Comédia":


“- Vou levar tua montaria como símbolo dos meus intentos.”



“(A) rainha estava ao lado de seu amante, montada com ele no cavalo encarnado”



o cavalo é também, numa das leituras possíveis do conto, um símbolo da inteligência que dá mobilidade aos anseios. Ela constitui um dos quatros caminhos para a salvação, uma inovação na doutrina de Swendenborg, uma vez que a salvação tradicional da igreja sempre foi apenas a de caráter ético, exaltando a justiça e a bondade.

A inteligência abstrata é aqui um segundo caminho, que deve incluir, segundo E.S., os gozos e os prazeres da vida. O terceiro caminho ou tipo de salvação é acrescentado por William Blake: o exercício da arte.

Insistindo nos paralelos: A inteligência do guerreiro revoltoso do conto é vermelha, vigorosa e indócil. A ética, intricada demais entre diversos níveis de motivações pessoais para que tenhamos disposição para analisá-la aqui. Quanto à arte, esse protagonista poderia ser considerado, de alguma forma, um artista?

Seria mais interessante que essa pergunta ficasse solta, lembrando apenas que, metalinguisticamente, suas ações nos dão a impressão de conter, sim, uma preocupação estética subliminar, especialmente na primeira parte do texto. São, ao menos, cheias de uma dignidade teatral.

A quarta via para a salvação, a mais negada em versões comuns do céu-inferno, seria a dos prazeres originados no corpo sensorial. Aí entra Perséfone, despertando o poeta no guerreiro, o amor no coração revoltoso. O homem que chega ao céu após uma vida de renúncia aos gozos sensuais, segundo anedota narrada por Swedenborg, não é capaz de compreender as conversas dos anjos, nem de apreciar a arte, "por se haver empobrecido. É, simplesmente, um homem justo e mentalmente pobre."

Não devemos ir mais além nas considerações iniciadas cinco parágrafos acima. Afinal, não cabe a ninguém decidir, sequer imaginar, quem será salvo ou não.

Sobre o livre-arbítrio recai toda a pressão de existir, qualquer que seja o mundo.

E parece que a salvação passa longe do intento dos personagens. O desejo de Lúcifer, Gabriel e Perséfone exclui rezas, adorações a deuses e apegos a entes queridos e é, tomando versos de Tennyson citados na aula magistral em que me apoio para esta análise: simplesmente possuir o dom de permanecer, de não cessar.



Referência bibliográfica: Borges, Jorge Luis, Cinco Visões Pessoais, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985.

Ilustração: Inferno Canto XXV - William Blake (1790)

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